quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Eu não me descobri gay, me avisaram. por Rafael Rodrigues

Eu não me descobri gay, me avisaram. Me avisaram ainda quando pequeno, quando cursava as séries iniciais na escola. Me avisaram que eu andava demais com as meninas e um dia poderia ser confundido com uma delas.

Estranhavam o fato de eu ir muito bem nas aulas, ter uma letra bonita e a professora sempre me pedir pra passar a lição no quadro. Afinal, gostar de estudar e tirar boas notas eram coisas de menina. "Esse menino é muito delicado", avisavam uns aos outros.

Um pouco mais velho, por volta dos 10, meu cabelo caía nos ombros e era grande o suficiente pra me confundirem, de fato, com uma garota. Minha mãe odiava: o meu cabelo comprido, claro, e não só as confusões que faziam. Ela me obrigava a corta-lo e eu, sempre firme, nunca aceitava. "Corta esse cabelo, parece uma menina! Todo mundo na rua comenta", era mais uma vez avisado.


Eu pensava: e qual o problema se eu realmente parecer uma menina? Uma vez minha mãe me levou ao cabeleireiro e, sem me deixar saber, pediu pro moço cortar bem curto. Eu passei meses sem sair de casa. Quando ia pro colégio, usava capuz pra esconder o cabelo curto e por vergonha - acho que de parecer um menino.





Minha voz fina era característica certeira para me avisarem "vai ser gay". O verbo no futuro dava a entender que eu era hétero e um dia, como num passe de mágica, me "transformaria" em gay. Eu não sabia o que era ser gay, não conhecia minha sexualidade e nem compreendia sua complexidade. E mesmo assim todos me consideravam gay. No ensino fundamental não tinha jeito: onde eu ía, ouvia gritos "viadinho", "bichona", "vira homem". Eu sempre me ofendia porque ninguém nunca havia me dito que tudo bem ser gay e por isto, eu não sabia me defender. O que ia responder? "Não sou uma bichona. Sou macho, sou hétero, olha meu cabelo comprido como de uma menina, minha voz fina como de uma menina, meu jeito de andar, de falar, sou delicado, como uma menina. Não está vendo? Não sou viado". Era impossível evitar os avisos. "Avisos", neste caso, também podem ser entendidos como ofensas. Ou eu apenas vivia e ignorava todos os avisos, ou tinha que imitar um macho-alfa o tempo todo - o que nenhum ser humano merece.


Quando levei minha mãe pra fazer minha inscrição do balé, aos 12, ela perguntou se eu tinha certeza que queria dançar. "Você pode continuar só no xadrez aos sábados, rafa", me avisou. Eu conheci a dança na igreja que frequentava quando pequeno. As meninas dançavam e eu achava lindo. Um dia pedi pra participar e levaram o caso até o pastor que recusou de imediato por temer a reação das pessoas. Tive que me contentar em fazer parte do grupo de hip hop.


Na oitava série, cansado de tantos avisos, tive uma namoradinha numa tentativa frustada de provar pros outros e pra mim mesmo que estavam errados quanto a minha sexualidade. Ela logo percebeu que minha presença não era muito efetiva e arrumou um namorado que, desta vez, parecia se sentir atraído por meninas.





Se ensino médio tivesse outro nome se chamaria: libertação. Quando deixei o ensino fundamental e passei a estudar longe de casa com pessoas totalmente desconhecidas, me encontrei. Fiz amigos que gostavam das mesmas coisas que eu e lá, ninguém me chamava de viadinho pelos corredores.


Com o tempo fui mudando meu jeito de me vestir e de me portar. Fui me aceitando como era naturalmente, desde criança, parecido com uma menina. Cortava minhas roupas, usava shorts curto e queria "estar na moda". Uma vez o diretor do colégio chamou eu e uma amiga pra conversar e questionou o uniforme cortado. "Vocês não podem se vestir assim aqui dentro", ele avisou. "É o nosso estilo. O nome da escola está aqui. Não vamos mudar". Minha mãe diz que passei a ficar rebelde. Rebelde, neste caso, pode ser entendido como ir contra todas as regras morais de casa e da sociedade.


Aos 15, ainda no ensino médio, saí pra uma festa com uns amigos e fiquei, de fato, com um garoto - que foi namorado por dois anos. Estava num lugar em que todos eram como eu e ninguém me julgava por estar beijando um garoto. Foi o marco pra minha aceitação. "É isso que eu sou! Essa é minha vida. Cansei de todos os avisos".


E depois de tantos avisos que tive ouvir durante toda a vida, quando finalmente me assumi e decidi viver todas as características que me apontavam desde pequeno, vi todos se assustarem. Realmente não é tarefa fácil ser você mesmo. Eu não me descobri gay, me avisaram. E eu decidi viver todos os avisos. Rafael Rodrigues 

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